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sexta-feira, 26 de abril de 2013

O jurista Izaac Pereira Dutra Filho explica O suposto “mensalão” e o falso “domínio do fato” na #AP470

Xeque - Marcelo Bancalero

Olha ai por que eles tem tanto medo!
O artigo do Mídia Crucis  mostra que não se trata de uma luta  cega de militantes e simpatizantes do PT, mas de uma luta de todos os que  respeitam a Constituição e Justiça.
O jurista Izaac Pereira Dutra Filho é um dos mais cultos e sagazes homens do Direito que o nosso país tem hoje em dia.  Dá uma aula para quem ainda tem dúvidas de que existiram ERROS no STF na AP 470



Leia o artigo


O suposto “mensalão” e o falso “domínio do fato” na #AP470 (1)

O jurista Izaac Pereira Dutra Filho é um dos mais cultos e sagazes homens do Direito que o nosso país tem hoje em dia. Não é apenas a nossa opinião, mas a de renomados professores que consultamos a respeito da mesma questão abordada no texto de Pereira Dutra Filho que hoje publicamos: a confusão feita na Ação Penal 470 – o processo do suposto “mensalão” – em torno da chamada “teoria do domínio do fato”.
Destacamos, por nossa conta – ou seja, independente do autor do texto – que a “teoria do domínio do fato” tem duas versões. A primeira, abertamente nazista, foi elaborada por Hans Welzel em 1939. A segunda, foi desenvolvida por Claus Roxin. Estranhamente, para aqueles pouco afeitos aos problemas teóricos – isto é, filosófico-formais – do Direito, este segundo desenvolvimento tem um sinal ideológico oposto ao do primeiro: foi a necessidade de punição jurídica aos nazistas que fez com que Roxin fizesse o seu aporte.
Alguns autores expressaram esse problema histórico, transportando-o – em nossa opinião, equivocadamente – para a própria teoria ou para o seu desdobramento/desenvolvimento. Por exemplo: “A noção de domínio do fato é contemporânea ao finalismo de Hans Welzel (1939), que propugnava ser autor, nos crimes dolosos, aquele que detém o controle final do fato. (…) Antes de Claus Roxin, porém, não havia propriamente uma teoria, senão um cipoal de postulados de conteúdos amiúde contraditórios e raquíticos, que seriam sistematizados pelo catedrático de Munique”, etc. (cf. Guilherme Guimarães Feliciano, “Autoria e participação delitiva. Da teoria do domínio do fato à teoria da imputação objetiva“. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 745, 19 jul. 2005).
Roxin foi o autor mais citado no STF por ocasião do julgamento da AP 470. Observa Pereira Dutra Filho: “nada estranho, infelizmente, que, nos últimos tempos o STF abandone a lei e crie categorias jurídicas a bel-prazer. No entanto, fazê-lo em nome de Roxin foi ainda mais despropositado“.
Pois, justiça se lhe faça (!), Claus Roxin jamais pretendeu que sua teoria substituísse as provas na condenação dos réus. Comenta o jurista brasileiro: “Não deixa de ser irônico, dado o seu prestígio internacional e, em particular no Brasil, que Claus Roxin seja citado muitas vezes para fundamentar o afastamento da aplicação da lei penal brasileira. Roxin não propõe um direito penal contra legem, ou seja, um direito penal que contrarie a lei penal alemã. Não pretendemos (…) fazer a defesa das teses de Roxin, estamos apenas realçando sua fidelidade à lei. No caso dele, da lei alemã. No nosso, deve, ou pelo menos deveria ser, a lei brasileira“.
Pois, a tragédia, do ponto de vista da filosofia do Direito, nota Pereira Dutra, é que, no Brasil, a teoria do domínio do fato é dispensável, pois não existem no arcabouço jurídico brasileiro os problemas que essa teoria se propôs a resolver no seu correspondente alemão.
O que não impediu, certamente, que expressões retiradas do “Tratado” de Roxin fossem invocadas a torto e a direito, no STF, como “verdadeiras palavras mágicas“, apesar de sua ausência de significado no caso concreto (exceto, acrescentamos nós, o significado de condenar sem provas, o significado de substituir a lei e o Direito pela mera perseguição política).
No fundo, como diz Pereira Dutra, “trata-se da singela questão de que, em uma Democracia, o Parlamento faz a lei e o Judiciário a aplica. Vivemos no Brasil um momento em que abundam teorias e trabalhos acadêmicos para que juízes não se pautem mais pela lei“.
Assim, não espanta que o Direito brasileiro tenha sido abandonado – substituído por uma ficção de Direito alemão que não existe aqui nem na Alemanha. Nas palavras de Pereira Dutra: “Causa espanto a falta de referência ao nosso Código Penal (CP) no julgamento do ‘mensalão’. Nosso CP disciplina de forma diferente do CP alemão a matéria do concurso de pessoas. No entanto, ele disciplina. Não temos que importar o direito penal alemão para substituir nossa disciplina legal. Não é correto invocar teorias jurídicas para modificar a disciplina legal pátria, muito menos em temas de Direito penal, onde o princípio da legalidade avulta em importância“.
A questão, lembra o nosso jurista, fora já resolvida por um de seus mais ilustres antecessores, o ministro Nelson Hungria, em seus “Comentários ao Código Penal”.
A fonte única do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em matéria penal, entre lei e direito.”
C.L.
IZAAC PEREIRA DUTRA FILHO (1)*
1. O presente texto pretende demonstrar que, no julgamento do chamado “mensalão”, o STF cometeu inúmeros equívocos ao manipular a chamada teoria do domínio do fato.
2. Expressões como domínio do fato (Tatherrschaft), domínio funcional do fato (funktionelle Tatherrschaft), domínio final do fato (finale Tatherrschat), homem de trás (Hintermann), autor de escritório (Schreibtischtäter) aparatos organizados de poder (organisatorische Machtapparate) foram invocadas como solução mágica para as dificuldades probatórias e teóricas surgidas no julgamento.
3. Com base no próprio Claus Roxin, que foi o autor mais citado no julgamento, esclarecemos o alcance de todos esses institutos. Servimo-nos dos Tomos I e II do Tratado de ROXIN. O primeiro na edição de 2006 e o segundo na edição de 2003 (2), as mais recentes.
4. A tese central aqui defendida é a seguinte: ao contrário do que foi feito no julgamento do “mensalão”, a teoria do domínio do fato, tanto em ROXIN, como entre aqueles que primeiramente começaram a construir a base dessa teoria, não é um critério de afirmação da responsabilidade penal de alguém. Tal teoria somente entra em cena depois de afirmada a responsabilidade penal com base nas provas e nos critérios de imputação. Vencida essa primeira etapa, ela ingressa para esclarecer se o imputado será punido como autor ou como partícipe. E aqui entra a questão central da importância da teoria do domínio do fato no direito penal alemão. Lá, quando se afirma que alguém é partícipe, necessariamente ele terá direito a uma redução da pena. Se se afirma que o imputado é autor, não terá direito a redução da pena. Essa redução é significativa e pode mudar substancialmente a situação do acusado, por exemplo, em um assassinato, onde a pena é de prisão perpétua. Em ROXIN, “domínio do fato” é um critério da afirmação da autoria e de diferenciação da participação. Sabemos que no nosso Código Penal, partícipe ou executor são somente formas de adequação típica. Entre nós, nada impede que um partícipe tenha pena maior do que a pena do próprio executor e este, por sua vez, tenha pena menor do que a de um partícipe. Do ponto de vista do nosso ordenamento jurídico, a teoria do domínio do fato carece de importância, se for considerada em sua real significação e não da forma distorcida como se deu no julgamento da ação penal 470.
5. Repetindo, a teoria do domínio do fato não veio para responder se uma pessoa será ou não responsabilizada penalmente. A afirmação dessa responsabilidade penal deve ser extraída dos sistemas de imputação já conhecidos: causalismo, finalismo ou funcionalismo. É sintomático que ROXIN trate a teoria do domínio do fato somente no Tomo II do seu Tratado, dedicado às formas especiais de aparecimento do fato punível. Os critérios de imputação da responsabilidade penal são tratados no Tomo I, dedicado aos fundamentos e estrutura do fato punível.
6. Para começar, é preciso entender a disciplina do assunto no Código Penal (CP) alemão. Na lei alemã, aquele que induz outrem a entrar em uma residência e dali subtrair bens móveis é INDUTOR (Anstifter) de um crime de furto; o induzido que entra na residência e dali subtrai os bens é AUTOR (Täter) de um crime de furto; e um terceiro que tenha emprestado a gazua para a prática do crime é um PARTÍCIPE (Gehilfe) do crime de furto (3). Nesse exemplo, de acordo com disposição expressa do CP alemão, somente o partícipe que emprestou a gazua terá direito a uma redução da pena. Por outro lado, o indutor, embora com rigor técnico seja partícipe, não tem direito à referida redução da pena. E o autor, evidentemente, também não terá direito a redução da pena.
7. No exemplo do furto, somente é autor aquele que entrou na residência e dali subtraiu os bens móveis (praticou o fato por si mesmo “selbst begeht“). No entanto, o CP alemão prevê, ao lado da autoria imediata (praticar o fato por si mesmo, ou seja, em linguagem simples, colocar a mão na massa e executar sozinho o tipo penal) mais duas formas de autoria; portanto, sem direito à redução de pena. As duas são nossas conhecidas: autoria mediata e coautoria. O autor mediato se serve de uma pessoa isenta de responsabilidade penal para cometer o crime, uma criança, um doente mental etc. O autor mediato comete o fato punível através de outrem (die Straftat durch einen anderen begeht). Aqui, na autoria mediata, o executor é um mero instrumento (Werkzeug) da vontade do autor. Já na coautoria, o fato é cometido em comum por mais de uma pessoa (begehen mehrere die Straftat gemeinschftlich). Na coautoria, apesar de vários os intervenientes, todos estão em pé de igualdade, seja do ponto de vista subjetivo (não existe preponderância da vontade criminosa de um sobre a vontade dos demais), seja do ponto de vista objetivo (todos colocam a mão na massa). Se dois homens, cada um com uma arma, ameaçam uma mulher e os dois realizam o ato sexual, são coautores do crime de estupro; ainda são coautores, se apenas um deles ameaça com a arma e somente o outro realiza o ato sexual. Nessa última situação, ambos colocam a mão na massa, haja vista que o tipo penal do crime de estupro contém as duas condutas: grave ameaça e ato sexual.
8. Portanto, o CP alemão define três formas de autoria para as quais não caberá redução da pena. Traz ainda um conceito de participação, para o qual não caberá a referida redução da pena que é a indução (Anstifung) (4). No CP alemão, todos os demais partícipes têm direito à redução da pena. No citado exemplo de ROXIN, é o caso daquele que emprestou a gazua. O indutor, a rigor, também é partícipe, ele não entra nas três formas de autoria acima indicadas. O CP alemão não diz que o indutor é autor, diz que ele é punido como se autor fosse. Em síntese, apesar de ser um partícipe, com relação ao indutor, a lei alemã, de forma excepcional, não permite a redução da pena.
8.1. Síntese do assunto na lei alemã. A autoria assume três modalidades: a.1) autoria imediata, quem executa o crime por si mesmo e sozinho coloca a mão na massa: efetua o disparo, coloca o veneno, desfere as facadas, oferece ou promete a vantagem ao funcionário público etc; a.2) autoria mediata, o autor se vale de uma pessoa que executa o crime como mero instrumento (o executor atua sem consciência do que faz ou atua mediante coação); a.3) coautoria, todos os intervenientes praticam o fato de forma comum. Para todas essas três formas de autoria, a lei não admite a referida redução da pena. A participação (Teilnahme) assume, por sua vez, duas formas: b.1) a indução (Anstifung) e b.2) qualquer outra forma de auxílio (Beihilfe). O primeiro partícipe (indutor) não tem direito à redução da pena; enquanto o segundo partícipe tem direto à redução da pena.
8.2. Cabe adiantar uma explicação. Tanto o autor mediato (aquele que faz incidir em erro ou coage o executor) quanto o indutor poderiam ser considerados homens de trás (Hintermann), mas essa expressão deve ser reservada somente para o autor mediato. O fato é que o indutor tem que realizar um processo de convencimento. Depois de convencido, o induzido passa a agir por conta própria, ele não é um mero instrumento da vontade do homem de trás, como seria o caso daquele que falsifica um documento porque o homem de trás aponta uma arma para sua cabeça. Ou seja, homem de trás (Hintermann) é uma expressão que deve ser reservada para os casos de autoria mediata. Como adiante veremos, ROXIN irá propor a expressão “autor de escritório” (Schreibtischtäter) como uma espécie do gênero Hintermann (homem de trás). Tanto o Hintermann como Schreibtischtäter se referem somente aos casos em que o executor age como mero instrumento. Essas duas expressões foram lançadas de forma totalmente assistemática no julgamento da ação penal 470.
8.2.1. Embora tanto o indutor como o autor mediato não tenham direito à redução de pena, essa distinção é fundamental para a compreensão do tema e ganhará relevo quando da análise dos chamados aparatos organizados de poder.
9. Portanto, já entendemos a disciplina do assunto no CP alemão. Como de praxe, no entanto, isso não basta. A regra de impedir a redução da pena para quem seja autor, em alguns casos concretos, se mostra muito rigorosa.
10. Vamos a um caso clássico do direito alemão. No ano de 1940, uma mulher, para ocultar o que ela entendia ser a desonra de uma gravidez fora das regras da sociedade de então, ao acabar de dar à luz, insta, induz sua irmã a matar o recém-nascido. Atendendo ao pedido da parturiente, a irmã teria afogado a criança em uma banheira (Badewannen-fall - caso da banheira). A irmã que teria afogado a criança pratica o fato ela mesma (selbst begeht), portanto seria autora e não teria direito à redução de pena que, à época, era a pena de morte. No CP alemão atual, 1975, a pena é de prisão perpétua para esses casos (5).
11. Para mitigar o rigor da lei em casos como o da banheira, surgiu na Alemanha, já no final do século XIX, a chamada teoria subjetiva da autoria. Como o próprio nome diz, ela contrapõe ao dado objetivo (no nosso exemplo, afogar a criança) um dado subjetivo (ao afogar a criança, a autora não queria matá-la por vontade própria, em interesse próprio, mas para atender ao pedido da irmã). Com esse dado subjetivo, poder-se-ia, e, de fato, foi assim julgado, considerar aquela que teria afogado a criança não como autora e sim como partícipe, passando a ter direito a uma substancial atenuação da pena.
12. Segundo ROXIN, em sua primeira variante, a teoria subjetiva adota o critério da vontade de autor. Autor seria aquele que age com “vontade de autor” („Täterwillen” [animus auctoris]) e o partícipe, seria quem age com “vontade de partícipe” („Teilnehmerwillen” [animus socci]).
13. Uma segunda variante da teoria subjetiva é a teoria do interesse. Autor seria quem agisse com interesse próprio no fato e partícipe seria aquele que agisse em interesse de outrem, ou seja, sem interesse próprio. Foi essa segunda vertente a usada pelo Tribunal do Império no caso da banheira para, não obstante a autoria direta (autoria imediata com o ato de afogar a criança), mitigar a reprimenda e afastar a pena de morte. Entendeu-se que aquela que afogou a criança não agiu em interesse próprio, mas no interesse da parturiente.
14. Já a jurisprudência do Tribunal Federal Alemão (que substituiu o Tribunal do Império) é oscilante, como afirma ROXIN. Embora em geral entenda que quem realiza o tipo com as próprias mãos seja autor e não mero partícipe (6), há exceções. De grande repercussão foi o chamado caso Staschynkij. Ele seria um agente soviético que, a mando do serviço secreto soviético, teria matado dois exilados que se encontravam na então Alemanha Ocidental. O tribunal o considerou apenas partícipe. O mesmo tratamento alguns tribunais alemães adotaram em julgamentos de criminosos de guerra nazistas. Considerou-se que nazistas executores de crimes violentos teriam agido em interesse alheio e subordinados à vontade alheia.
15. É dentro dessa problemática que ROXIN retrabalha a teoria do domínio do fato para se contrapor a essas concepções subjetivas (teoria da vontade de autor e teoria do interesse). Assim como suas rivais, a teoria do domínio do fato não surge para fundamentar a imputação da responsabilidade penal. Em linguagem mais simples, ela não surge para afirmar se alguém é culpado ou inocente, como equivocadamente fez o STF. Ela serve somente para dizer, depois de analisada a prova e constatada a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, se o culpado será tratado como autor ou partícipe. Ela não tem nada a ver com a análise da prova nem com a afirmação da existência de responsabilidade penal.
Notas
1 Izaac Pereira Dutra Filho, Promotor de Justiça em Brasília/DF e Especialista em Ciências Penais (izaacpdf@gmail.com); com a colaboração de Alfredo de Pádua, advogado em Goiânia/GO (alfredodepadua@hotmail.com). Autorizada reprodução e divulgação, desde que mantida a fidelidade ao texto e a indicação da autoria e colaboração.
2 Strafrecht, Allgemeiner Teil, Band I, 4., vollständig neue bearbeitete Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 2006; Band II, 2003. Infelizmente são comuns distorções de pensamentos de autores estrangeiros, em particular do próprio ROXIN. Assim ao final consta um anexo, na sequência exata do texto no Tratado, sem excluir ou acrescentar nada, com seis parágrafos que nos dão a ideia exata do alcance da formulação de ROXIN quanto à teoria do domínio do fato. Tendo em vista a presença de pessoas com domínio do idioma alemão no meio jurídico, poder-se-á, quem entender que nossa tradução não está correta, corrigi-la. As críticas serão bem vindas. Por outro lado, com a transcrição direta, poupamo-nos de reproduzir os artigos do Código penal alemão, referentes ao tema da autoria e da participação, haja vista que ROXIN já o faz nos trechos do anexo. ANOTAMOS que as transcrições do texto original têm apenas a finalidade de comprovar nossa fidelidade ao pensamento de ROXIN. Portanto, sua leitura não é necessária para o entendimento do presente texto.
3 Esse exemplo com o tipo penal do furto é de ROXIN e consta no anexo.
4 Pode soar estranho que o indutor seja tecnicamente partícipe, dado que, na consciência comum a conduta de quem induz outrem a praticar um crime, a conduta do mandante, não raro, é mais reprovável do que a própria execução. Acontece que reprovabilidade de uma conduta nasce, tecnicamente, da conjugação da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. Em um direito penal do fato e não das subjetividades, o dado primordial é o fato, o acontecimento. Antes de serem considerados os aspectos pessoais, as motivações, a conduta de vida de cada interveniente, deve ser constatada a existência de um fato. A própria palavra alemã que ainda nos dias atuais designa o que nos chamamos de tipo, que é palavra Tatbestand, foi tradução inicial que os alemães fizeram da palavra latina corpus delicti. Diante do corpo de delito, do resultado objetivamente, materialmente considerado, por exemplo, o cadáver, a conduta de efetuar os disparos ou desfechar os golpes com a faca é o dado mais relevante. Ter contratado o matador de aluguel é algo secundário, do ponto de vista estritamente objetivo. Assim sendo, por outro lado, também na consciência comum, na linguagem corrente, “matar alguém” é algo diferente de “mandar matar alguém”. De fato, o nosso tipo do homicídio não tipifica “mandar matar alguém”, tipifica somente “matar alguém”. Assim, entre nós, a conduta do mandante não encontra adequação típica direta, imediata no art. 121 do nosso CP. Sua tipicidade decorre da existência de um tipo de extensão que é o art. 29 que diz que “todo aquele que concorre para o crime, incide nas penas a ele cominadas”. É nesse aspecto técnico, que fica claro no nosso CP, em que reside a pertinência da afirmação de que a conduta do mandante é acessória em relação à conduta do executor e, por conseguinte, o mandante é partícipe. Infelizmente não é somente para leigos que essas palavras são importantes. Na literatura jurídico-penal atual, no Brasil, reina a mais completa confusão. Autores de renome se levantam contra o que lhes parece ser um absurdo considerar que o mandante seria “mero” partícipe. No CP alemão, em que o partícipe tem necessariamente uma pena menor em relação ao autor, o adjetivo mero tem sentido. Entre nós ser participe ou ser autor (a rigor o nosso CP usa a palavra “executor”) é somente questão de adequação típica. Não se percebe que, por trás dessas sutilezas técnicas, existe uma opção legal pelo direito do fato em detrimento do direito penal de autor. O juiz penal somente deveria analisar a culpabilidade (categoria jurídica do crime na qual ingressam com maior relevo os dados pessoais de cada um dos intervenientes) depois de afirmada a existência de um tipo, de um fato, de um Tatbestand. Na teoria jurídica do crime, as palavras têm profundo componente ideológico. De forma recorrente, o CP alemão, por exemplo, deixa de lado as palavras “tipo legal” ou “crime”, palavras de caráter abstrato, e usa a expressão “fato punível” (Straftat). O próprio Ernst Beling, na sua famosa obra de 1906, em que concebe o tipo como algo abstrato (ele deixou de ver o cadáver para ver o homicídio), optou por permanecer com a palavra anterior (Tatbestand) e se limitou a indicar, entre parêntesis, o que seria a expressão abstrata: typus. Também aqui se trata, na escolha das palavras, de um reforço ideológico do direito penal do fato. No que diz respeito à tipicidade, que é a porta de entrada da responsabilidade penal, nosso CP e o CP alemão, assim como um direito penal do fato, dão primazia o homem da frente e não ao homem de trás. De forma simples, podemos dizer que o direito penal do fato realiza o postulado Iluminista de que ninguém deve ser punido pelo que pensa ou pela sua conduta de vida, mas, somente, pelo que fez, pelo fato que realizou. Essa concretização dos ideais Iluministas deveria ser também a tarefa de uma teoria jurídica do crime correta. Uma teoria do crime que somente busca interpretar, integrar e não reescrever a lei. O que temos assistido é a invocação de teorias jurídicas “pós-modernas”, que levam a que o Juiz julgue de acordo com sua particular visão de mundo, de acordo com seus valores pessoais, em detrimento da lei. É forçoso reconhecer, entretanto, que, na maioria das vezes, o que se passa com essas teorias “pós-modernas” é simplesmente uma incompreensão de penalistas famosos em outros países.
5 Apesar de penas diferentes, a disciplina da autoria e da participação no atual CP alemão é, essencialmente, a mesma do Código penal do Império de 1871.
6 Nunca é demais reafirmar que o adjetivo “mero” tem sentido no direito penal alemão onde o partícipe recebe, necessariamente, uma pena atenuada. Na sistemática do nosso CP, falar em “mero” partícipe é uma impropriedade. De acordo com a nossa disciplina legal, o partícipe pode receber pena maior do que o executor. Diz o art. 62 do nosso CP que a pena será agravada em relação ao agente que “executa o crime ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa”. Por outro lado, nosso art. 29 afirma: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade“. Entre nós, ao contrário do CP alemão, o peso da intervenção, da contribuição, objetivamente analisada para a realização do evento (emprestar a arma versus efetuar os disparos) não vincula de forma necessária a pena. É bom lembrar também que a redução da pena no CP alemão não é pequena. Dispõe o art. 49, I do CP alemão que a pena de prisão perpétua pode ser reduzida a uma pena de 3 (três) anos de prisão. Podemos imaginar as batalhas homéricas travadas entre acusação e defesa sobre autoria e participação. Daí a importância de teorias como a do domínio do fato entre eles.
Continua na próxima edição

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